quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

A Casa da Água

Resenha do livro A Casa da Água de Antonio Olinto
Carolina Maria Costa Bernardo

Escrita em 04 de Novembro de 2013

A Casa da Água narra 70 anos do cotidiano de seis gerações de uma família negra no contexto de África-Brasil-África entre os anos de 1898 e 1968. O livro apresenta uma cronologia dos personagens, uma nota editorial sobre o autor e outra sobre a obra, por Adonias Filho. Está dividido em quatro partes: 1) A viagem, 2) O marido, 3) A casa da Água e 4) O grande chefe. São 369 páginas de intensas descrições, poucos diálogos, longas orações na 3ª pessoa de um narrador que conhece interiormente os pensamentos de nossas personagens femininas e compartilha de forma generosa, envolvente e desafiadora. Os longos períodos descritivos pesam nas páginas iniciais, mas logo que nos familiarizamos com as personagens, ganhamos fôlego para inspirar e expirar as vidas ali apresentadas.
Olinto utiliza o Oriki como recurso estilístico na voz de Mariana: “Ó marido de membro quente que me faz gozar tanto. (...) Ó água que chegas para todos nós, que sejas sempre abundante e tragas felicidades para a dona do poço”. Não há uma atenção especial às descrições dos aspectos físicos das personagens. Não se percebe o uso de adjetivos que exaltem a beleza dos personagens, apenas com Emilia e Fadori este recurso é utilizado. A atenção e dada aos costumes, as memórias, ao cotidiano, as emoções, ao movimento. As reflexões de Mariana revelam que na África ela não percebe que beleza seja atributo tão valorizado com no Brasil.
Uma surpresa ao ler a Nota Editorial sobre o autor, depois do encantamento por tão célebre carreira, foi descobrir ao pesquisar no Google, que Antonio Olinto não era negro. A imagem criada durante a leitura da biografia, não foi correspondida ao ver algumas fotos daquele premiado pela obra “centrada na epopeia de uma família de negros brasileiros” que decidem voltar a África e conhecido por discutir a questão racial negra em várias cidades dos Estados Unidos, Londres, Lagos. Confesso uma sutil frustração (ou seria preconceito) com esta descoberta. As expectativas criadas antecipadamente sobre o pioneiro da ficção cientifica no Brasil que interpretou com maestria o cotidiano de uma família negra que retorna a áfrica foram de um homem negro.
Feita a primeira pesquisa e confirmando a cor que em nenhum momento é citada em nota editorial (se fosse negro, provavelmente, o atributo da cor antecedesse os predicados: crítico erário, jornalista, poeta, professor universitário), segui com a leitura, não menos atenta, nem menos interessada. Contudo, curiosa: pode um homem branco conhecer a alma do negro africano, do negro brasileiro, e do negro brasileiro que volta para a África? Seria ele diferente de Gilberto Freyre? Possivelmente, já que as indicações da obra vieram de intelectuais negros que a apontam como excelente interprete.
A obra, publicada em 1969, traz aspectos da vida do autor: Zora, a esposa é citada como uma jornalista que entrevista o jovem Fadore; Piau, a cidade natal de sua mãe. Minas Gerais, Rio de Janeiro, Lagos, Londres, são lugares por onde Antônio Olinto viveu. Traz também fatos históricos e contextos distintos da história do Brasil, da Nigéria, Togo, Benin e do mundo. Muitas cidades reais, outras fictícias. Muitos personagens citados são reais na história o que nos faz indagar sobre quais os limites entre a ficção e os fatos reais. Existiu Mariana? Existiu Catarina? Existiu o navio Esperança? Existiram as cartas? Existiu a casa da água. Existiu Sebastian Silva?
Em outra pesquisa descubro que Sebastian Silva foi inspirado no personagem histórico Sylvanus Olympio, presidente do Togo, que era descendente de brasileiros e que foi assassinado. Mas para outros personagens, se existiram ou não, a obra nos remete a uma realidade cultura e social muito próxima do que existiu na Bahia e na Nigéria do final do século XIX até meados do século XX.
Foram alguns dias de intimidade com Mariana, personagem de destaque entre os quase 100, e as relações que se estabeleceram em torno dela nos territórios geográficos - e subjetivos – de lugar, de identidade, de cultura e de gênero, nos permitindo acompanhar os estágios de algumas vidas, entre o nascimento e a morte. Nos dias de leitura, sonhei com Mariana como se eu fosse ela, e outras vezes, como se ela fosse qualquer mulher de um passado histórico da qual pertenço. A obra nos faz refletir sobre muitas questões que constituíram as sociedades onde houve a colonização européia e a escravização do negro, e para além disso, nos aproxima intimamente do universo – negra – feminino e das questões identitárias do ser afrodescendente.
Na trama são apresentadas as personagens: Catarina, a avó nascida em Abeokutá, Nigéria, África; Epifânia, a mãe e Mariana, a filha, ambas nascida em Piau, Minas Gerais, Brasil. Três mulheres negras que deixam Piau, passando pelo Rio de Janeiro, Bahia, para chegar do outro lado do oceano e realizar o desejo da avó de retornar a terra de origem onde nascera Ainá e fora vendida pelo tio para ser escravizada no Brasil,onde ficou por quase 60 anos sem esquecer de África. Mariana tem dois irmãos, Emília e Antônio, personagens secundários na narrativa, que também embarcam e compõe o núcleo familiar dos Santos - sobrenome do dono da fazenda, escolhido por Catarina após ganhar liberdade e precisar de um sobrenome.
Os esclarecimentos sobre cada personagem são dados amiúde e entre longas páginas. Nas primeiras você é informado sobre Piau, desconfia que seja é MG, mas somente na página 47 descobre que a cidade fica em Minas Gerais.  Demora até nos situarmos acerca do tempo histórico de Catarina e Mariana. Na página 36, aprendemos com Mariana que vai a escola, que os tempos vividos na Bahia era a primeira república: “a professora dizia que a republica melhorara o Brasil, recitava poemas de castro Alves que falava em navio negreiro e em escravos, ficou sabendo que José do patrocínio lutara contra a escravidão.” Muito pouco é dito com objetividade, era tempo do governo de Floriano Peixoto. Uma obra que suscita pesquisa e ajuda a esclarecer o contexto de um Brasil e de uma áfrica. Ao final da leitura me ocorreu procurar as cidades citadas no mapa. Se me ocorrera isto no início a compreensão dos eventos históricos se daria de forma mais acessível. A obra é uma ficção, mas poderia ser o retrato de um tempo histórico, utilizado como livro didático nas escolas ao invés do que temos.
Catarina, ao embarcar do Rio de Janeiro para Bahia, inicia o trânsito entre seu passado e seu futuro na memória do corpo, com lembranças de uma vida na África e da violência sofrida depois que é vendida. Na Bahia as personagens ganham vida e a narrativa se torna então muito interessante. Em torno do Mercado, passam dois anos  a ser reconhecer em cada rosto negro, na religiosidade, nas histórias contadas com a chegada de cada barco, na linguagem, “uma palavra em português, outra em ioruba”.  O cotidiano na barraca, nas reuniões, festas, candomblé, missa, os trajes, os comportamentos são descrito com muitos detalhes e precisão que torna possível observar a construção do sentimento de pertencimento e identidade da avó e de Epifânia.
À Mariana é dada muita liberdade por sua mãe e avó (o que parece um traço das personalidades matriarcais femininas). Ela então aproveita e se movimenta, olha tudo sempre com atenção. Ri, ri muito, ri de tudo e de todos. Observadora repara nos detalhes dos gestos, nas falas, nos comportamentos. Percebe os territórios, relaciona quantidades entre negros e brancos, e as relações de poder - não de forma explicita e consciente, mas na forma como questiona, como pensa diante do que vê. Mariana é muito próxima da avó, uma ligação em que se reconhece, se identifica com as experiências promovidas pela avó.
Quando acompanha a mãe, apenas observa, descreve sem muita empatia, muita interação. Parece transitar bem entre as experiências proposta pela avó e pela mãe: no seu pescoço o uso da medalha do senhor do Bonfim dada pelo padre e das contas amarelas dadas pela mãe é exemplo disto. A mãe e declaradamente católica. Enquanto a avó dos terreiros. Há muita cumplicidade e respeito entre mariana, a avó e a mãe. Mariana não questiona as orientações das pessoas mais velhas. Apenas diz sim. Mas pergunta quando tem  curiosidade de entender. Sempre disposta a aprender coma a mãe e com a avó, ouve com atenção cada ensinamento internalizando-os. Não são dizeres vagos, são falas que dão sentido e significados aos comportamentos e condutas morais que edificam a personalidade de Mariana.
Depois de dois anos na Bahia, Catarina consegue um barco a velas e segue com a família por longos dias durante seis meses no veleiro Esperança. Ouvimos os medos de Catarina e Epifânia: O que deixam na Bahia? O que encontrariam em Abeokutá. Nada, no entanto, dito em voz alta. Entre as mulheres desta epopéia percebemos que apenas dizem o necessário, o silêncio é sabedoria. Neste barco são traçados os destinos  de uma serie de pessoas que se tornam “parentes”, uma comunidade fraterna em Lagos. Sobre o oceano atlântico assistimos a transição de Mariana, a simbologia de um rito de passagem. O corpo se modifica, os olhos se aquietam no mar, deixa de ser menina e torna-se moça, sangrando ao chegar na África.
Em lagos, se adaptam facilmente e recomeçam pelo trabalho no mercado (como na Bahia). Não há muito estranhamento. Sentem-se como na Bahia. Exceto Epifânia. Mariana vai para escola de freiras, a família passa a freqüentar regularmente a missa, o contato com diversas línguas faz Mariana apreender os idiomas falados em cada território onde circula, torna-se professora.
Morre Catarina, Nasce Ainá e logo morre Ainá.  A partir de então Mariana torna-se mulher. Casa-se, tem dois filhos e fica sozinha, com a partida do marido para Europa para fazer dinheiro. Para mariana o trabalho estava em qualquer lugar, não julgava o marido, mas lamentava. Tem um sonho que se repete, compra uma casa, constrói um poço, se torna vendedora de água, comerciante em Togo, Nigéria, Benin, chefe de família, sinhá, dona mariana. Torna-se uma mulher financeiramente rica e com ela, em seu entorno, prosperam muitas pessoas que estavam no Esperança. Sebastian, o marido, depois de anos retorna e encontra a mulher. Não se envergonha, não se sente inferior. Entra nos negócios e se envolve. Não se percebe machismo. Lembro de uma fala de Mariana que diz que Sebastian havia nascido para trabalhar para o outro. Logo morrre, de morte matada, como não se devem morrer os jovens. Deixa no ventre de sua mulher um novo filho.
São três os filhos. Crescem e estudam em territórios diferentes.   Os dois primeiros vão para Londres, o terceiro para Paris. Orientação do Sacerdote Ifá. Envia os filhos para Europa Ela dá aos filhos, com consciência, a escola dos branco, os idiomas, os livros e uma religiosidade católica-umbandista como uma referencia. De Londres voltam Joseph, advogado e Ainá, médica, ou como ela mesma diz, uma curandeira diplomada. De Paris volta Sebastian, o professor, líder político e grande chefe. Os filhos vão e retornam para fortalecer uma África ainda sob domínio europeu.
Para Mariana, aos pais caberia oferecer as melhores oportunidades aos filhos, e instrumentalizá-los para mudar as coisas. Quando a mãe pergunta se não deveriam voltar ao Brasil, a dona da Casa da Água diz: “não estamos mais no Brasil, isto aqui é África , acho tolice  essa mania da gente ficar presa as coisas antigas.  (...) os mais novos se afastarão por completo do que a gente faz . eles todos serão africanos.”
Nas cartas que os filhos escrevem de Londres e Paris, nenhuma relata racismo ou qualquer conflito existente. O romance não retrata a relação entre negros e brancos. Esse tema não é discutido com afinco como em Casa grande e senzala. A primeira (e única) experiência sexual com de Mariana com homem branco, o professor Frances, evidencia que até os seus 30 anos não havia experimentado tanta proximidade. Ela estranha a presença do corpo branco. E o casamento de Antonio com Elizabeth, uma inglesa. No mais, apenas nas negociações comerciais e políticas havia algum tipo de contato.
Certo mal estar surge com a liberdade atribuída as mulheres negras sobre seu corpo e sua sexualidade. O estranhamento que me faz indagar se tem elas uma liberdade sobre seu corpo e sua sexualidade ou a elas é atribuído esse valor? Qual será a concepção de mulher negra para Antônio Olinto, home branco. Será que apenas descreve o que observa. As descrições de Epifania com o homem que fez filho nela, fez sexo com um negro sob a escada, a relação com com o padre... homens que se apropriam apenas do corpo da mulher para o beneficio do sexo. O sexo, aprieira experiência, era esperado com desejo e sem culpa por Mariana. Que por decisão própria escolhe ser depois do casamento, diferente de Emília que decide. Tive, em muitos momentos a sensação de ver a mulher negra sempre disponível e disposta ao sexo sem culpas, sem restrições, muitas vezes sem afeto. O sexo como a penetração de um membro em suas vaginas.
Uma consagração para mim foi ver o aconselhamento religioso de Ifá para que mariana não se casasse novamente. Apenas ter homem para o sexo, para companhia. O que de fato, ela faz.
Ah Mariana, são muitas as descobertas em sua companhia. Tenho certeza que estará em meus pensamentos como referencia de uma mulher do seu tempo, que respeita o passado e vislumbra um futuro diferente e melhor. Ela me fez chorar, rir, refletir. O único momento que vi Mariana ir contra a liberdade, é quando descobre o relacionamento amoroso do filho com outro homem e interfere decididamente para que seu filho faça outra escolha, por uma mulher com quem possa ter filho.
Mariana pergunta: Nós somos brasileiros ou africanos? Para mim está é uma grande questão de pesquisa? Como se sentem hoje os negros com consciência de sua ancestralidade? A avó Catarina vai  áfrica em busca de suas origens e faz a família reconhecer  e afirmar a origem brasileira. São africanos descendentes de brasileiros.

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