Resenha do livro A
Casa da Água de Antonio Olinto
Carolina Maria Costa Bernardo
Escrita em 04 de Novembro de 2013
A Casa da Água narra 70 anos do cotidiano de seis
gerações de uma família negra no contexto de África-Brasil-África entre os anos
de 1898 e 1968. O livro apresenta uma cronologia dos personagens, uma nota
editorial sobre o autor e outra sobre a obra, por Adonias Filho. Está dividido
em quatro partes: 1) A viagem, 2) O marido, 3) A casa da Água e 4) O grande
chefe. São 369 páginas de intensas descrições, poucos diálogos, longas orações
na 3ª pessoa de um narrador que conhece interiormente os pensamentos de nossas
personagens femininas e compartilha de forma generosa, envolvente e
desafiadora. Os longos períodos descritivos pesam nas páginas iniciais, mas
logo que nos familiarizamos com as personagens, ganhamos fôlego para inspirar e
expirar as vidas ali apresentadas.
Olinto utiliza o Oriki como recurso estilístico na
voz de Mariana: “Ó marido de membro
quente que me faz gozar tanto. (...) Ó água que chegas para todos nós, que
sejas sempre abundante e tragas felicidades para a dona do poço”. Não há uma
atenção especial às descrições dos aspectos físicos das personagens. Não se
percebe o uso de adjetivos que exaltem a beleza dos personagens, apenas com
Emilia e Fadori este recurso é utilizado. A atenção e dada aos costumes, as
memórias, ao cotidiano, as emoções, ao movimento. As reflexões de Mariana
revelam que na África ela não percebe que beleza seja atributo tão valorizado
com no Brasil.
Uma surpresa ao ler a Nota Editorial sobre o autor,
depois do encantamento por tão célebre carreira, foi descobrir ao pesquisar no
Google, que Antonio Olinto não era negro. A imagem criada durante a leitura da
biografia, não foi correspondida ao ver algumas fotos daquele premiado pela
obra “centrada na epopeia de uma família de negros brasileiros” que decidem
voltar a África e conhecido por discutir a questão racial negra em várias
cidades dos Estados Unidos, Londres, Lagos. Confesso uma sutil frustração (ou
seria preconceito) com esta descoberta. As expectativas criadas antecipadamente
sobre o pioneiro da ficção cientifica no Brasil que interpretou com maestria o
cotidiano de uma família negra que retorna a áfrica foram de um homem negro.
Feita a primeira pesquisa e confirmando a cor que em
nenhum momento é citada em nota editorial (se fosse negro, provavelmente, o
atributo da cor antecedesse os predicados: crítico erário, jornalista, poeta, professor
universitário), segui com a leitura, não menos atenta, nem menos interessada.
Contudo, curiosa: pode um homem branco conhecer a alma do negro africano, do
negro brasileiro, e do negro brasileiro que volta para a África? Seria ele
diferente de Gilberto Freyre? Possivelmente, já que as indicações da obra
vieram de intelectuais negros que a apontam como excelente interprete.
A obra, publicada em 1969, traz aspectos da vida do
autor: Zora, a esposa é citada como uma jornalista que entrevista o jovem
Fadore; Piau, a cidade natal de sua mãe. Minas Gerais, Rio de Janeiro, Lagos,
Londres, são lugares por onde Antônio Olinto viveu. Traz também fatos
históricos e contextos distintos da história do Brasil, da Nigéria, Togo, Benin
e do mundo. Muitas cidades reais, outras fictícias. Muitos personagens citados
são reais na história o que nos faz indagar sobre quais os limites entre a
ficção e os fatos reais. Existiu Mariana? Existiu Catarina? Existiu o navio
Esperança? Existiram as cartas? Existiu a casa da água. Existiu Sebastian
Silva?
Em outra pesquisa descubro que Sebastian Silva foi
inspirado no personagem histórico Sylvanus Olympio, presidente do Togo, que era
descendente de brasileiros e que foi assassinado. Mas para outros personagens,
se existiram ou não, a obra nos remete a uma realidade cultura e social muito
próxima do que existiu na Bahia e na Nigéria do final do século XIX até meados
do século XX.
Foram alguns dias de intimidade com Mariana,
personagem de destaque entre os quase 100, e as relações que se estabeleceram
em torno dela nos territórios geográficos - e subjetivos – de lugar, de
identidade, de cultura e de gênero, nos permitindo acompanhar os estágios de
algumas vidas, entre o nascimento e a morte. Nos dias de leitura, sonhei com
Mariana como se eu fosse ela, e outras vezes, como se ela fosse qualquer mulher
de um passado histórico da qual pertenço. A obra nos faz refletir sobre muitas
questões que constituíram as sociedades onde houve a colonização européia e a
escravização do negro, e para além disso, nos aproxima intimamente do universo –
negra – feminino e das questões identitárias do ser afrodescendente.
Na trama são apresentadas as personagens: Catarina,
a avó nascida em Abeokutá, Nigéria, África; Epifânia, a mãe e Mariana, a filha,
ambas nascida em Piau, Minas Gerais, Brasil. Três mulheres negras que deixam
Piau, passando pelo Rio de Janeiro, Bahia, para chegar do outro lado do oceano
e realizar o desejo da avó de retornar a terra de origem onde nascera Ainá e
fora vendida pelo tio para ser escravizada no Brasil,onde ficou por quase 60
anos sem esquecer de África. Mariana tem dois irmãos, Emília e Antônio,
personagens secundários na narrativa, que também embarcam e compõe o núcleo
familiar dos Santos - sobrenome do dono da fazenda, escolhido por Catarina após
ganhar liberdade e precisar de um sobrenome.
Os esclarecimentos sobre cada personagem são dados amiúde
e entre longas páginas. Nas primeiras você é informado sobre Piau, desconfia
que seja é MG, mas somente na página 47 descobre que a cidade fica em Minas
Gerais. Demora até nos situarmos acerca
do tempo histórico de Catarina e Mariana. Na página 36, aprendemos com Mariana que
vai a escola, que os tempos vividos na Bahia era a primeira república: “a professora dizia que a republica
melhorara o Brasil, recitava poemas de castro Alves que falava em navio
negreiro e em escravos, ficou sabendo que José do patrocínio lutara contra a
escravidão.” Muito pouco é dito com objetividade, era tempo do governo de
Floriano Peixoto. Uma obra que suscita pesquisa e ajuda a esclarecer o contexto
de um Brasil e de uma áfrica. Ao final da leitura me ocorreu procurar as
cidades citadas no mapa. Se me ocorrera isto no início a compreensão dos
eventos históricos se daria de forma mais acessível. A obra é uma ficção, mas poderia
ser o retrato de um tempo histórico, utilizado como livro didático nas escolas
ao invés do que temos.
Catarina, ao embarcar do Rio de Janeiro para Bahia,
inicia o trânsito entre seu passado e seu futuro na memória do corpo, com lembranças
de uma vida na África e da violência sofrida depois que é vendida. Na Bahia as
personagens ganham vida e a narrativa se torna então muito interessante. Em
torno do Mercado, passam dois anos a ser
reconhecer em cada rosto negro, na religiosidade, nas histórias contadas com a
chegada de cada barco, na linguagem, “uma palavra em português, outra em
ioruba”. O cotidiano na barraca, nas reuniões,
festas, candomblé, missa, os trajes, os comportamentos são descrito com muitos
detalhes e precisão que torna possível observar a construção do sentimento de
pertencimento e identidade da avó e de Epifânia.
À Mariana é dada muita liberdade por sua mãe e avó
(o que parece um traço das personalidades matriarcais femininas). Ela então
aproveita e se movimenta, olha tudo sempre com atenção. Ri, ri muito, ri de
tudo e de todos. Observadora repara nos detalhes dos gestos, nas falas, nos
comportamentos. Percebe os territórios, relaciona quantidades entre negros e
brancos, e as relações de poder - não de forma explicita e consciente, mas na
forma como questiona, como pensa diante do que vê. Mariana é muito próxima da
avó, uma ligação em que se reconhece, se identifica com as experiências
promovidas pela avó.
Quando acompanha a mãe, apenas observa, descreve sem
muita empatia, muita interação. Parece transitar bem entre as experiências
proposta pela avó e pela mãe: no seu pescoço o uso da medalha do senhor do
Bonfim dada pelo padre e das contas amarelas dadas pela mãe é exemplo disto. A mãe
e declaradamente católica. Enquanto a avó dos terreiros. Há muita cumplicidade e
respeito entre mariana, a avó e a mãe. Mariana não questiona as orientações das
pessoas mais velhas. Apenas diz sim. Mas pergunta quando tem curiosidade de entender. Sempre disposta a aprender
coma a mãe e com a avó, ouve com atenção cada ensinamento internalizando-os.
Não são dizeres vagos, são falas que dão sentido e significados aos comportamentos
e condutas morais que edificam a personalidade de Mariana.
Depois de dois anos na Bahia, Catarina consegue um
barco a velas e segue com a família por longos dias durante seis meses no
veleiro Esperança. Ouvimos os medos
de Catarina e Epifânia: O que deixam na
Bahia? O que encontrariam em Abeokutá. Nada, no entanto, dito em voz alta. Entre
as mulheres desta epopéia percebemos que apenas dizem o necessário, o silêncio é
sabedoria. Neste barco são traçados os destinos
de uma serie de pessoas que se tornam “parentes”, uma comunidade
fraterna em Lagos. Sobre o oceano atlântico assistimos a transição de Mariana,
a simbologia de um rito de passagem. O corpo se modifica, os olhos se aquietam
no mar, deixa de ser menina e torna-se moça, sangrando ao chegar na África.
Em lagos, se adaptam facilmente e recomeçam pelo trabalho
no mercado (como na Bahia). Não há muito estranhamento. Sentem-se como na
Bahia. Exceto Epifânia. Mariana vai para escola de freiras, a família passa a
freqüentar regularmente a missa, o contato com diversas línguas faz Mariana apreender
os idiomas falados em cada território onde circula, torna-se professora.
Morre Catarina, Nasce Ainá e logo morre Ainá. A partir de então Mariana torna-se mulher.
Casa-se, tem dois filhos e fica sozinha, com a partida do marido para Europa
para fazer dinheiro. Para mariana o trabalho estava em qualquer lugar, não
julgava o marido, mas lamentava. Tem um sonho que se repete, compra uma casa,
constrói um poço, se torna vendedora de água, comerciante em Togo, Nigéria,
Benin, chefe de família, sinhá, dona mariana. Torna-se uma mulher
financeiramente rica e com ela, em seu entorno, prosperam muitas pessoas que
estavam no Esperança. Sebastian, o
marido, depois de anos retorna e encontra a mulher. Não se envergonha, não se
sente inferior. Entra nos negócios e se envolve. Não se percebe machismo.
Lembro de uma fala de Mariana que diz que Sebastian havia nascido para
trabalhar para o outro. Logo morrre, de morte matada, como não se devem morrer
os jovens. Deixa no ventre de sua mulher um novo filho.
São três os filhos. Crescem e estudam em territórios
diferentes. Os dois primeiros vão para
Londres, o terceiro para Paris. Orientação do Sacerdote Ifá. Envia os filhos
para Europa Ela dá aos filhos, com consciência, a escola dos branco, os
idiomas, os livros e uma religiosidade católica-umbandista como uma referencia.
De Londres voltam Joseph, advogado e Ainá, médica, ou como ela mesma diz, uma curandeira
diplomada. De Paris volta Sebastian, o professor, líder político e grande
chefe. Os filhos vão e retornam para fortalecer uma África ainda sob domínio
europeu.
Para Mariana, aos pais caberia oferecer as melhores
oportunidades aos filhos, e instrumentalizá-los para mudar as coisas. Quando a
mãe pergunta se não deveriam voltar ao Brasil, a dona da Casa da Água diz: “não estamos mais no Brasil, isto aqui é África
, acho tolice essa mania da gente ficar
presa as coisas antigas. (...) os mais
novos se afastarão por completo do que a gente faz . eles todos serão
africanos.”
Nas cartas que os filhos escrevem de Londres e Paris,
nenhuma relata racismo ou qualquer conflito existente. O romance não retrata a
relação entre negros e brancos. Esse tema não é discutido com afinco como em Casa grande e senzala. A primeira (e
única) experiência sexual com de Mariana com homem branco, o professor Frances,
evidencia que até os seus 30 anos não havia experimentado tanta proximidade.
Ela estranha a presença do corpo branco. E o casamento de Antonio com
Elizabeth, uma inglesa. No mais, apenas nas negociações comerciais e políticas
havia algum tipo de contato.
Certo mal estar surge com a liberdade atribuída as
mulheres negras sobre seu corpo e sua sexualidade. O estranhamento que me faz
indagar se tem elas uma liberdade sobre seu corpo e sua sexualidade ou a elas é
atribuído esse valor? Qual será a concepção de mulher negra para Antônio Olinto,
home branco. Será que apenas descreve o que observa. As descrições de Epifania
com o homem que fez filho nela, fez sexo com um negro sob a escada, a relação
com com o padre... homens que se apropriam apenas do corpo da mulher para o
beneficio do sexo. O sexo, aprieira experiência, era esperado com desejo e sem
culpa por Mariana. Que por decisão própria escolhe ser depois do casamento,
diferente de Emília que decide. Tive, em muitos momentos a sensação de ver a mulher
negra sempre disponível e disposta ao sexo sem culpas, sem restrições, muitas
vezes sem afeto. O sexo como a penetração de um membro em suas vaginas.
Uma consagração para mim foi ver o aconselhamento religioso
de Ifá para que mariana não se casasse novamente. Apenas ter homem para o sexo,
para companhia. O que de fato, ela faz.
Ah Mariana, são muitas as descobertas em sua companhia.
Tenho certeza que estará em meus pensamentos como referencia de uma mulher do
seu tempo, que respeita o passado e vislumbra um futuro diferente e melhor. Ela
me fez chorar, rir, refletir. O único momento que vi Mariana ir contra a
liberdade, é quando descobre o relacionamento amoroso do filho com outro homem
e interfere decididamente para que seu filho faça outra escolha, por uma mulher
com quem possa ter filho.
Mariana pergunta: Nós somos brasileiros ou
africanos? Para mim está é uma grande questão de pesquisa? Como se sentem hoje
os negros com consciência de sua ancestralidade? A avó Catarina vai áfrica em busca de suas origens e faz a
família reconhecer e afirmar a origem
brasileira. São africanos descendentes de brasileiros.